quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Em uma fração de segundos, minhas mãos adquiriram vontade própria e plantaram-se em volta do pescoço daquela criatura desprezível. Tentava com elas, medir o quão real era a visão da presença aterradora que vinha me acompanhando nos últimos dias.



A primeira vez que a criatura se manifestou, fora há uma semana. Tinha acabado de chegar em casa do trabalho. Estava irritado, cansado e com fome. Abri a geladeira para engolir o que primeiro se apresentasse à minha frente. Reconheci um prato de comida mal terminado da janta de duas noites atrás. Ou três. Há tempos trabalhava num ritmo tão intenso e andava tão alucinado, que sequer conseguia parar para pensar no estado do lugar em que vivia.



Minha noção de tempo vinha-se distorcendo. Ora passava rápido, ora o tempo parava e eu sentia-me travado enquanto as outras pessoas desfilavam à minha frente, lentamente, como se eu não pertencesse àquele mesmo ambiente.



Voltei o olhar para o prato que havia largado na geladeira por não ter coragem de despejá-lo na lata de lixo, mesmo achando que o faria no dia seguinte. A comida começava a exalar odores azedos, no entanto, estava tão exausto e tão menos preocupado em satisfazer meu paladar e olfato do que a urgência da minha fome. Nessas condições, o conceito de comestível parecia a coisa mais sem importância a ser questionada no momento.



Bati a porta da geladeira e ensaiei meia-volta em direção à mesa. E lá estava ela, pela primeira vez. A um palmo dos meus olhos, a visão de um rosto pálido, frio, cadavérico, flutuando no ar, com olhos faiscantes do que só poderia ser traduzido em ódio ou fúria. Demoníacos. Foi tão rápido que quase duvidei de tê-la realmente percebido. Pisquei, tremi. Olhei para o prato em minha mão e, imobilizado, assistia a comida apodrecida deslizar para o chão em câmera lenta. Um pedaço de bife mal cortado, coberto de arroz, descrevia vagarosas piruetas no trajeto em espiral que terminaria na ponta do meu sapato. O choque atirou estilhaços do arroz empapado para todas as direções, como fogos de artifícios que se espalham depois do estouro. Como uma granada, atingira uma fila de formigas recém instaladas em minha cozinha. Imaginei uma delas sendo imortalizada numa fotografia preto e branco com a mesma expressão de terror da menina do Vietnã. Indo mais longe, consegui divertir-me com a idéia do mundo sendo colonizado por formigas. Quando esbocei o instinto de rir loucamente desses segundos de devaneio ridículo, lembrei-me da visão do rosto. O mundo voltou a girar freneticamente. Falta de ar. Teria sido real? Aquela face azulada, acinzentada, com olhos de fogo, teria realmente se colocado frente a mim? E por quê? Respirava rapidamente, tomado pela ansiedade. Corri em direção ao meu esconderijo de pílulas e enfiei um punhado da minha última aquisição garganta abaixo. Adormeci, quase instantaneamente.



Comecei a suar. A cama, encharcada, gelada, cheirando à amônia. O rosto aterrorizador tentava me sufocar. Agitado, rolando para todos os lados, sentia o estômago revirar. Como se acordasse de um pesadelo, sentei-me na cama em um movimento brusco. Abri os olhos: ela ainda estava lá! A criatura, ainda a enxergava, embora não a sentisse fisicamente. Desesperado, buscava ar. Com pouca força nas pernas, desci as escadas tropeçando, segurando no corrimão para não cair. Continuava sendo seguido. Cheguei na cozinha, ofegante. O rosto aumentava e diminuía de tamanho, mudando freneticamente de lugar, ora direita, ora esquerda, cada vez mais rápido. “Preciso me salvar”, pensava. De repente, a visão não era mais somente uma visão, comecei a sentir sua presença, sua respiração, sua concretude. Senti uma pressão brutal em meu pescoço. Em uma fração de segundos, minhas mãos adquiriram vontade própria e plantaram-se em volta do seu pescoço. Sim, era real. Flashback imediato das cenas que havia protagonizado na semana anterior. Um colega de trabalho, um idiota ambicioso que certamente teria tentado me sabotar. Seu pescoço era forte, rígido, tive que usar mais força do que esperava. A faxineira assistia ao episódio com horror. Simpatizava com ela, apesar de ser um tanto arredia. Ela não deveria estar ali. Seu pescoço era grande, porém macio, quase flácido. Sentia um cheiro enjoativo perto dela, talvez fosse o excesso de creme nos cabelos, lembro-me com nojo de meus dedos deslizando em sua nuca ensebada. Não precisei de muito esforço, embora meus braços já estivessem doloridos, não tanto pela força utilizada, mas pela tensão.



Porém agora, jogado no piso frio da cozinha, nocauteado, o tempo voltava ao seu ritmo vagaroso. Os olhos de fogo não paravam de crescer. A pressão em meu pescoço era maior e mais forte do que a que eu tentava exercer. Larguei meus braços. Lembrei-me então de Joana, caramba, havia-me esquecido dela naquela noite confusa. Precisava telefonar e dar uma explicação. Estava, pela primeira vez, apaixonado. Talvez a convidasse para um jantar especial ou uma viagem no final de semana. O anel, já o havia comprado, necessitava apenas criar a ocasião. Estava decidido a fazer a proposta, aquela que nunca pensara que faria na vida. O telefone tocou. Poderia ser ela. Olhei para a criatura: “eu preciso atender!” Ela sorriu, maliciosamente, como se saboreasse um grande prazer. E desapareceu.



O telefone insistia. Quis levantar, mas parou de tocar.

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