sexta-feira, 29 de julho de 2011


Fenda e Fuga


Quando envolta em um ambiente, a perspectiva perdia a lógica. Estranho esse universo que descobrira e tinha hora pra começar. De 8h às 18h, os ângulos eram retos e o mundo era plano. Saía então do trabalho, pegava o ônibus e, na metade do caminho, o asfalto das ruas dava sinais de vida. Ligeiros tremores que não eram sentidos pelos outros passageiros. Era uma sensação exclusiva e indicava a passagem entre mundos.

Uma montanha russa a empurrava aos trancos até sua casa. A partir das 19h de cada dia, sua porta a surpreendia com novas arquiteturas, móveis estranhos de estilos mutantes. Talvez um dia iria se acostumar a chegar cada noite num novo quarto, onde jogaria suas sapatilhas surradas em qualquer canto, deitaria numa nova cama e sentiria-se em casa. Enquanto em período de transição, seus pontos de apoio eram os pontos de fuga.

Chegou. Seu lar de hoje, um cenário seco. Sem cama, sem sofá, sem as muitas almofadas que cobririam o chão de sua sala se sua vida acontecesse dentro do tempo. Mas, fora dele,a realidade era outra. Das 8h às 18, era mais uma bailarina incansável de uma homogênea coreografia universal. Quando só, bailarina de uma caixinha de música vazia, girando em torno de si própria, sem tesouros sob a ponta de seus pés.

Sentou-se diante de um objeto que pendia do teto. Elegeu-o como seu apoio, sua fuga. Ficaria ali, ausente, buscando caminhos. Concentrou-se na fenda talhada em seu centro: vermelha. Vermelha e pulsava. Sentou-se mais perto. Seu coração em descompasso, numa tentativa de sincronizar as batidas com a pulsação ritmada do orifício. Sugado pelo ritmo, seu corpo aproximava-se. E o coração batia, e o ar faltava, e o corpo não obedecia, e o orifício a sugava. Cabeça, ombros, seios, tórax, ventre, quadris, pernas. Seus membros esmagados, aspirados e perdeu consciência.

Um segundo do mais absoluto nada, bolha de vácuo entre o tempo e o espaço. Um segundo em que não integrava nenhuma coreografia, ou mundo, ou tempo, ou ambiente. Era o segundo em que tinha paz.

E foi expelida com violência para a luz. 8h da manhã e sentia dor. Dor de recomeço.



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