domingo, 27 de junho de 2010

Eram cinco horas da manhã quando Anouar, marido de Malika, preparava o café da manhã para a família, como fazia desde que Anass nascera, o primogênito. Em seguida vieram Ahmed e Fouad. Três homens. Malika já estava satisfeita, mas Anouar gostaria de ter tantos filhos quanto uma mulher fosse fisicamente capaz de parir. Quando engravidara pela quarta vez, Malika tentou abortar por duas vezes. Falhou nas duas e Boutaina nascera. Da quinta gravidez, quase nem se deu conta. Ter filhos já havia virado um habito. Saloua veio ao mundo e não teria sido a ultima se o casamento não houvesse falido. Os cinco nasceram de parto normal, sem anestesia, como era natural que fosse. Costume.


Depois de passar um pano úmido na mesa, distribuiu sobre ela os utensílios do café: na cabeceira, uma bandeja de prata com um par de garrafas térmicas. Amarela para o leite integral, azul clara para o café preto. Torrões de açúcar num potinho de vidro, colheres e copos. Ao centro da mesa uma cesta de pão. Fatias de manteiga sem sal num pratinho, amlou em outro. Analisando a arrumação da mesa, percebeu que não havia colocado La Vache qui rit para a caçula Saloua, que não gostava do sabor insosso da manteiga sem sal e não suportava o peso do amlou no estômago vazio. ”Estranho, porque me esqueci ?”

Abriu a gaveta da geladeira, onde costumava ficar o queijo e viu que a caixa que havia trazido do bakkali na véspera não estava mais ali. Procurou pelos iogurtes que trouxera junto com o queijo e também não os encontrou. Isso só poderia significar duas coisas: ou Boutaina havia chegado em casa de madrugada com a fome assustadora que costumava ter quando desaparecia por mais de dois dias, ou Malika havia trancado a comida no armário para a empregada nova não comer.

Dirigiu-se ao móvel que costumava servir de esconderijo para itens mais luxuosos como azeite, iogurtes ou biscoitos. Coisas que, segundo Malika, serviam de tentação para o estomago esfomeado das empregadas novas, vindas das famílias pobres das montanhas ou do sul do país. Estava trancado à chave. Irritou-se, não concordava com as atitudes mesquinhas que sua mulher vinha desenvolvendo com o passar dos anos.

Subiu as escadas, apoiando-se no corrimão com a mão esquerda, a direita atrás do corpo. Anouar começou a demonstrar sintomas de Parkinson muito cedo, aos 45 anos. Andar com os braços cruzados atrás do corpo o ajudava a controlar os movimentos involuntários dos membros. Malika tinha uma raiva profunda de sua doença. Como se não bastasse tudo o que afirmava ter sofrido com ele, ainda tinha que agüentar um doente em casa. “Se é pra morrer tem que ser rápido” costumava dizer. “Essa historia de ficar rendendo, sofrendo, reclamando, é muito ruim. Só serve para atormentar a vida da família. O dia que eu tiver que morrer, quero que seja de um dia para o outro, bem rápido, de preferência sem ninguém ver.” Anouar sentia sua raiva e seu desprezo, mas procurava passar por cima. Ao menos publicamente. Seu espírito, desde que tomara consciência do que o futuro lhe reservava, havia sido tomado por um turbilhão de sentimentos avassaladores e perseguidores que não o deixavam em paz em nenhum momento do dia. Porém, utilizava o silêncio e o sorriso como escudo contra a pena alheia. Poucos percebiam o que seus breves olhares perdidos deixavam transparecer. Poucos se importavam em realmente perceber.

Em frente à porta do quarto de Malika, suspirou, como que buscando coragem ante uma situação desagradável. Contou alguns segundos e bateu. Nenhum som se pronunciara dentro do ambiente. Bateu mais uma vez, numa seqüência insistente e pouco paciente. Nenhuma resposta. Ultima tentativa. Silêncio total.

Já sabia. Não insistiria. Sua mulher mais uma vez, resolvera sumir. Provavelmente estaria em outra cama, em outro quarto, em outro país. Acompanhada.

Sabia que deveria ter se acostumado a essa altura dos acontecimentos, com a idéia de traição. Sabia que já nem deveria pensar na atitude de Malika como tal. Afinal, já não eram mais um casal. Eram uma mulher independente, bem sucedida e um doente cuja satisfação residia no pouco que ainda podia fazer pelo seu lar. Como o café da manhã. E que só faziam, por força do hábito e dos filhos, dividirem o mesmo teto.

Desceria as escadas, voltaria para a cozinha e tomaria seu café sozinho. Esperaria os filhos acordarem, seguiria a rotina da qual tanto necessitava e que ainda garantia à sua alma certa sanidade. Abriria a porta para a empregada nova. Compraria queijo e iogurte. Deixaria a moça se fartar como nunca. Anouar conhecia o significado e a dificuldade de uma privação. Havia sido privado da liberdade, da independência, da dignidade, do respeito. A diferença entre Anouar e Malika é que ele aceitava seu sofrimento. Malika jamais mereceria qualquer sofrimento. Era boa demais, era justa demais, era incrível demais. Dor era para os outros. Para as empregadas, para os perdedores. Para Anouar.

Para Malika, a melhor suíte do hotel mais caro de Málaga. E todos os caprichos que Farid pudesse solicitar ao serviço de quarto. Ela bancava.

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