segunda-feira, 21 de junho de 2010

Não era usual que Malika questionasse suas atitudes. Era impecável demais para sequer cogitar uma auto-análise. Isso significaria a aceitação da possibilidade de erro. Coisa que não cometia. Num dia normal, afastaria imediatamente qualquer reflexão sobre suas ações, pois possuía a cega certeza da inquestionabilidade de seus atos. Porém, hoje, ela acordaria com uma inquietação atípica.

Ainda na cama, sem abrir os olhos, sentia-se inerte como se seus membros fossem toscos pedaços de chumbo. O dia longo se anunciava a uma parte já semi-desperta de seu espírito e ela recusava essa idéia. Planejava virar-se de lado em busca de uma posição que a permitisse dormir mais um pouco. No entanto, o esforço físico exigido para o menor movimento parecia sobrehumano. Sua consciência começava a dar sinais de vida, mas ainda sem comando sobre seu corpo.

O quarto se revelava timidamente na pouca luz que conseguia receber às seis horas de uma manhã de inverno. Era obviamente o maior quarto da casa, com uma enorme cama feita sob medida. O colchão fazia inveja ao mais king size dos colchões. Queen size, seria mais adequado e Malika receberia lisonjeada o trocadilho.

Apesar de ganhar o suficiente para comprar sofisticadíssimos jogos de cama do mais fino algodão egípcio, como proprietária de uma escola de ensino infantil tradicional e bem renomada, enrolava-se nos populares cobertores chineses cem por cento poliamida que imitavam uma pelúcia, ora com desenhos de pele de tigre, ora de zebra ou de onça.  Comprados por cem dirhams na Casabarata. Por maiores que fossem, pareciam minúsculos na desproporcionalidade da cama.

As paredes em azul claro insinuavam um flerte com o kitsch, uma constante na decoração marroquina. A claridade alaranjada proporcionada pelo aquecedor elétrico quebrava um pouco a frieza da cor e do tempo. Os abajures em plástico recobertos de um dourado barato confirmavam o estilo de aceitação duvidosa. Já as flores artificiais que contornavam o espelho, berravam desesperadamente para serem arrancadas dali. Constituíam uma agressão explícita ao gosto de qualquer carioca da zona sul do Rio. Mas ali era Tanger. E o sol tangerino começou a ensaiar sua traiçoeira dança de raios tímidos penetrando no cafona quarto azul, escolhendo o rosto de Malika como alvo de um pouco provável bom dia.

Sentindo a claridade, decidiu com um gemido preguiçoso e contrariado que deveria deixar de lado a moleza prazerosa. Numa fração de segundos, sobressaltou-se. Sua mente despertou violentamente, trazendo à tona a consciência de sua estranha agitação. E a sensação que a possuiu em seguida era de extremos e condenáveis medo e fragilidade, o que jamais, sob nenhuma tortura, admitiria algum dia em sua vida. Exceto, claro, se isso lhe conviesse, como uma estratégia calculada para atingir seus objetivos.

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