quarta-feira, 23 de junho de 2010

Num gesto já incorporado ao automatismo do ritual matinal, os pés de Malika tateavam o tapete em busca de suas pantufas acolchoadas. Enfiou-os rapidamente e dirigiu-se ao banheiro de sua suíte.

Malika orgulhava-se de sua banheira, a única com hidromassagem da casa. Era seu quarto de rainha e deveria oferecer-lhe todo o conforto. Um cesto com uma coleção de buchas e ásperas luvas pretas de banho ficava pendurado num cantinho próximo à torneira dourada. Essas luvas pretas são bem tradicionais, compra-se em qualquer bakkali por cinco dirhams. São como uma lixa e servem para retirar o excesso de células mortas da pele, coisa que os marroquinos fazem com uma certa compulsão, numa busca obsessiva pela limpeza corporal. Eles acreditam que, quando se esfregam profundamente no banho, saem com a pele mais branca, motivo de satisfação para a maioria das mulheres, cuja beleza ideal reside na pele mais alva que se pode obter e no cabelo mais liso que se consegue alisar. Mesmo que isso signifique ficar mais de três dias sem lavar o cabelo, para não desmanchar a escova, criando assim uma contradição na supostamente impecável higiene estabelecida pela religião. Mas, como todo costume e tradição marroquinos, não permitem questionamentos. Devem ser simplesmente aprendidos de gerações passadas, repetidos no presente e ensinados às gerações futuras.

Malika conhecia muito bem todos esses costumes. Por isso havia reservado aquela manhã da quinta-feira para ir ao cabeleireiro. Deixou seu trabalho encaminhado no dia anterior, para dar-se ao luxo de passar toda a manhã no salão do francês Claude, ponto de encontro das mulheres estrangeiras que moram em Tanger e também de algumas tangerinas mais afortunadas, uma vez que o preço pela tesourada francesa beira o triplo da marroquina. E entende-se muito bem o porquê no resultado final.

Normalmente, Malika gostava muito desse dia da semana em que cumpria este ritual de beleza. Porém, hoje, a apreensão a incomodava da maneira mais desagradável, pois não conseguia identificar sua fonte. Sentia-se nervosa, com a respiração curta, como se algo estivesse para acontecer.

Jamais questionaria se esse sentimento seria uma conseqüência das atitudes que vinha tomando nos últimos dias. Ela jamais se arrependeria. Jamais se olharia no espelho e encontraria uma interrogação no olhar da figura refletida. A imagem que a encarava era sempre o rosto de uma mulher confiante, dona de si, orgulhosa do status que havia, com muita luta, conseguido alcançar numa sociedade onde ainda se conta nos dedos as mulheres empreendedoras, independentes financeiramente e que não precisam viver à sombra de uma figura masculina.

Infelizmente, na luta por esta posição, a vida havia-lhe roubado muito da sensibilidade e da doçura de uma mulher. A máscara da dureza fora sem duvida um instrumento poderoso. No entanto, ela o havia incorporado com tanta convicção, que passou a fazer parte de sua personalidade. Uma dureza indissociável da frieza, como nas pequeninas e insistentes pedras que lapidaram a cabeça de suas não tão longínquas antecessoras no decorrer dos séculos.

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